segunda-feira, 17 de março de 2008

O último dente

Em sua boca, só havia um dente. Apenas um, estendido lá, firme e forte na comissão de frente da arcada superior. Fico imaginando o que terá acontecido com os outros. Caíram todos, eu sei, mas a história de vida daquele dente, o único que restou, é que me intriga. Eu o considero um guerreiro, o dente! Afinal, que coragem restar naquela boca, sozinho, depois de ver todos os companheiros abandonarem a luta.

Era sexta - feira! A casa estava lotada. Foi a primeira vez que eu vi Zé*, dançando animadamente ao som do famoso chorinho que anima a galera no Bar Tartaruga. Dançava mole, sorrindo, esquecido do mundo. Usava uma camiseta azul, propaganda política de alguém, provavelmente alheio à sua existência, bermudão preto e um chinelo de borracha gasto. E dançava.


Aos poucos foi chamando a atenção das pessoas que se entreolhavam com o coração pesado de pena. Mais um Zé, bêbado e pobre, retrato do nosso Brasil. Mas de repente, a música pára. E Zé começa a andar por entre as mesas pedindo um trocado. Vejo de longe que, em todas as mesas que ele pára, as pessoas estão às gargalhadas. E quem está de pé, também sorri. Estranho, o que será que esse Zé tem?


Quando ele chega à minha mesa, abre um grande sorriso, e só então eu vejo: o dente! Com a mão estendida Zé sorri, e sorri tão de verdade, com uns trejeitos bem únicos, que não há como não cair na gargalhada. Acho que é essa a intenção dele, humorista nato. Lembro-me de alguém falar na mesa: se a Globo encontra esse cara, é sucesso na certa.


Sei que depois de ganhar o dinheirinho da noite, ele vai embora, sem insistir, sem enganar, sem cobrar nada de ninguém. E nós ficamos ali sentados, sorrindo por dentro sabe-se lá de quê.


Para mim, a culpa é toda dele, solitário naquela boca, imóvel, olhando pra gente. O que seria de Zé sem aquele último dente?

* O nome verdadeiro de Zé eu ainda não descobri.

Ilustração por Soraya Coelho e Pedro Borges

4 comentários:

Daniel Souza disse...

Ju, fantástico o texto. Não sei se o personagem é real, mas já vi um cara parecido com esse na frente do Arena dançando com uma garrafa de cachaça!

Ana Cristina Padilha disse...

Ju, tá maravilhoso. Parece que eu tava vendo o Zé. Acho que todo mundo deve ir ao Tartaruga na sexta para ver o Zé depois de ler seu texto. Parabéns, amiga. Você nasceu para isso!

romuloc disse...

oi Ju,
seus textos são sempre sedutores. A gente vai lendo e eles vão nos puxando para dentro da história, vão se desenvolvendo e a vontade de continuar lendo vai aumentando. Com esse não foi diferente. Impossível não imaginar a cena com um personagem tão inusitado. Muito legal. beijos!

Soracha disse...

Ju, que ilustração linda! Depois de vê-la, até fiquei inspirada e li seu texto. HUAHUAHUAHUAHUAU! Brincadeirinha... amiga, que conto fofo! Adorei a sua idéia de partilhar seus escritos com todo mundo. Não vejo a hora de ler os próximos! Keep writing!